Do Porto de Gênova ao interior de São Paulo: a história de uma família de imigrantes italianos

Fortunato, Regina, Giovanni e Elisa chegaram ontem em Gênova. Mesmo exaustos da viagem de mais de trezentos quilômetros, num trem lento, foram até o escritório da “Navegazione Generale italiana” para conferir os papéis do embarque e assegurar-se do horário da partida. Com os bilhetes da passagem em mãos e com o passaporte carimbado tratam de arrumar um quarto de pensão para passarem a noite. O preço era alto, uma lira, mas precisavam descansar e acomodar as crianças, e a hospedaria de Gênova não oferecia boas condições.

 
Fortuntato Pollesel
Fortunato Pollesel em 1894 quando soldado da cavalaria italiana. Acervo: Claudinei Pollesel
 

Aquela seria a última tarde na Itália e era a primeira vez que a família saia junta para um passeio. Fortunato havia morado na capital da província, Treviso, no período que serviu o exército, mas Regina e as crianças nunca haviam saído de Francenigo e dos arredores de Gaiarine. Tudo era novidade e a cara de espanto de Regina e das crianças divertiam Fortunato: a galeria Vittorio Emanuele, o monumento a Cristóvão Colombo, o descobridor da América e o mais especial, o jardim zoológico! Cegonhas, avestruzes, vacas, macacos e pássaros era uma verdadeira festa para Joanin, que corria em todas as direções, alucinado com a visão de tantos animais.

 
Despedida de Gênova
A despedida da Itália e última vez que veriam sua amada terra
 

De volta à pensão, exaustos e famintos, ceiaram o restante do lanche trazido de casa: frutas secas, pão, queijo e azeitonas. A ocasião merecia ! Fortunato foi até a cantina e trouxe um litro de vinho tinto seco, e o melhor, produzido no Vêneto! “Valeu ter investido a última lira, afinal é a nossa última noite na Itália”.

Fortunato insistiu e Regina aceitou um pouco para o brinde: “Viva l’Mérica! L’América!”. O sono veio logo e trataram de dormir, pois amanhã será o grande dia: O embarque para o Brasil.

 
Regina Gobbo
Regina Gobbo, a matriarca da família a caminho do Brasil. Acervo: Claudinei Pollesel
 

Era final de outono e fez muito frio à noite. Mesmo assim, às seis horas, estavam a caminho da Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, imensa, “a mais monumental da região da Ligúria”, como havia dito a dona da pensão. Fortunato caminha rápido e puxa Joanin, que choraminga sonolento.

Regina vai com Elisa no colo, que dorme bem embrulhada e amamentada. A igreja está lotada, e percebe-se pelas expressões e pelas malas que a maioria dos fiéis farão o mesmo trajeto: América! Pedem a proteção de “Dio Padre” e da “Madonna Santa” nesta aventura de atravessar o Atlântico rumo ao Brasil. Fica para trás a família, os amigos, os costumes, as tradições e tudo, enfim.

 
Igreja Nossa Senhora da Anunciação
Interior da Igreja de Nossa Senhora da Anunciação em Gênova, onde a Família Pollesel pede a proteção de Deus para a longa jornada
 

O padre, velho e arqueado, inicia a celebração: “Gratiam tuam, quaesumus, Domine, mentibus nostris infunde, ut qui, angelo nuntiante, Christi Filii tui Incarnationem cognovimus, per Passionem eius et Crucem ad resurrectionis gloriam perducamur. Per eundem Christum Dominum nostrum. Amen.”.

Fortunato tenta organizar os pensamentos enquanto rezam e cantam: “Deus, qui per resurrectionem Filii tui, Domini nostri Jesu Christi, mundum laetificare dignatus es, praesta, quaesumus, ut per eius Genitricem Virginem Mariam, perpetuae capiamus gaudia vitae. Per eundem Christum Dominum nostrum”.

Após a missa voltam à pensão para pegar as malas, se é que três sacos amarrados pela boca podem ser chamados assim.

Às 10 horas a fila está imensa no cais. O embarque é lento e aos gritos, que se misturam aos longos e tristes apitos dos vapores que partem.

A visão do vapor que os espera é assustadora. O “Manilla” era imenso e sua figura marrom dominava o horizonte causando todo tipo de sentimento: medo, ansiedade, excitação e admiração. “Meu Deus, como é que isto não afunda?” era a frase mais ouvida entre os camponeses que, em sua maioria, nunca tinham visto um navio antes.

 
Vapor Manilla
O imenso Vapor Manilla no Porto de Gênova
 
O navio “Manilla” foi construído na Inglaterra, em 1873 , e recebeu o nome de “Whampoa”. Foi rebatizado como Manilla em 1878. Em 1881 foi transferido para a “Navegazione Generale Italiana” . Fez sua última viagem em 28 de junho de 1903 e foi sucateado em 1907.
Suas dimensões:
– 3.910 toneladas brutas
– 399,5 pés de comprimento com viga mestra de 42,2 pés
– movido á vapor e velas
– um chaminé, três mastros, uma única hélice
– construído em ferro
– velocidade de 12 nós (22 km por hora)
 

Na mão firme de Fortunato está o passaporte onde se lê em letras desenhadas:

“IN NOME DI SUA MAESTÁ UMBERTO I, PER GRAZIA DI DIO E PER VOLONTA DELLA NAZIONE RE D’ITALIA”.

Além do passaporte, leva também o “Certificato di cambiamento di residenza”, “Passaporto per l’interno” e “Schieda di famiglia” emitidos pelo município de Gaiarine e “Foglio di congedo illimitado” emitido pelo exército italiano. “Tanta pompa e tanto papel pra me expulsar do meu país”, pensa ele.

Regina carrega Elisa e grita com Joanin, que não fica quieto. Muito lentamente a fila começa a se movimentar. Afinal são mais de 1.500 imigrantes que embarcarão. São 329 famílias que esperam pela chamada.

O capitão inspeciona enquanto os funcionários da agência de imigração gritam os sobrenomes: “Manfredi, Rapharella, Ruffoni, Spolti, Leregni, Versetti”… Vai demorar pra chegar a vez, pois a família Pollesel está na 103a. posição nesta listagem.

“Travisan, Oielli, Clauboni, Colangeli, Rossi, Pettori…” continua a chamada e a confusão de crianças, velhos, mulheres prestes a dar á luz, entram naquele vapor imenso, assustados como animais sendo engaiolados numa jaula flutuante.

Já era noite quando o Manilla começa a se movimentar rumo ao oceano. O apito triste quebra o silêncio da noite enquanto rasga as águas calmas do mar da Ligúria rumo ao mar Tirreno no trajeto pré estabelecido: Nápoles, Palermo, Ilhas Canárias e Cabo Verde, na costa da África e por fim, América.

No porto que fica, chapéus e lenços tremulam. Nos imigrantes que vão, a certeza de que não voltarão a ver seu país e sua gente. Olham fixamente no porto na esperança de reter na memória esta última imagem da terra que não conseguiu dar-lhes nada, sendo que eles queriam tão pouco.

O sanfoneiro toca e alguém canta:

“Mérica, Mérica, Mérica cosa sara sta Mérica. Mérica, Mérica, Mérica L’é un bel mazzolino di fior.”
 
 
 

Autor Relato Imigrantes Italianos

Claudinei Pollesel é historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba e autor de livros na área de História e Genealogia.

Texto extraído do Blog Pessoal do Autor

Quer saber um pouco mais sobre como era a Viagem entre Itália e Brasil ? Clique aqui.

Olá pessoal, gostaram deste relato ? Emocionante, não é mesmo ?

Para os amantes de viagens, é interessante ver como os italianos encaravam as longas travessias que os trouxeram para o Brasil. 

Imaginem como era viajar no passado !! Todo meu respeito a este povo lutador, que veio para o Brasil e contribui para o crescimento da nossa nação.

Enfrentaram o medo da terra desconhecida com muita coragem e vontade de trabalhar.

Tem algum relato que gostaria de ver publicado aqui no Blog do Viajante Curioso ? Enviem-me um e-mail, terei o maior prazer em publicar.

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